segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Capitão e Dona Mina

Papai nasceu numa família simples. Meu avô nunca comprou um carro e sempre me pareceu estar em paz com isso, era metalúrgico, passava em casa para almoçar todo santo dia e, pelo o que diz a lenda, passou pouco tempo longe dos filhos até que eles crescessem. Vovó era boa vendedora antes de casar, parou de trabalhar porque o marido exigiu, não sossegou até que eles comprassem uma casa para chamar de própria e ensinou às netas que ninguém valoriza o trabalho doméstico.

Ele era calmo, ela nervosa, eles passaram muito perrengue juntos e os três filhos deram certo. Eram amigos dos primos, dos vizinhos, ajudavam quem podiam, tinham compaixão, não tinham muita coisa, mas quando eu estava com eles não me faltava nada. Dedicaram aos netos um amor de todo dia, mesmo sem ter a menor obrigação. Se doaram àquelas três crianças complicadas e deixaram que elas os amassem.

Vovô morreu de câncer. Eu sabia que ele saia de casa para fazer quimioterapia, mas sempre voltava fazendo piada, perguntando se nós tínhamos brincado e o que ia ter para a janta. Dava no mesmo que alguém falar que foi ao banco. Foi assim até eu descobrir que ele tinha a mesma doença que matou o Leandro da dupla com o Leonardo. Apesar de não ter se curado, a doença não consumiu a vida dele, nem a nossa alegria em estar com ele. Eu o vi definhar, ir se despedindo da vida, mas também enxerguei que é preciso ter coragem do começo ao fim.

Vovó sobreviveu exatos cinco anos a mais que o marido, sem ele nada mais foi completo. Ela me ensinou a rezar Ave Maria, a usar bastante perfume e a montar acampamento na sala. Na casa dela eu varria e enxugava louça pelo menos duas vezes por dia, não circulava de pijama e nem dormia até tarde. Minha avó prestava uma atenção danada em mim, me inspecionava, sempre me mandava de volta com a expressa recomendação de que minha mãe me levasse ao médico. Era brava, tinha mania de limpeza e de remédio, mas chegava toda mansinha para conversar quando percebia que eu estava triste. Nunca disse que eu tinha que crescer quando passava horas chorando depois de me despedir do meu pai. Ela nunca me mandava parar de sofrer, pelo contrário, ficava ali sofrendo comigo.

Meu avô tinha combinado de dançarmos uma valsa quando eu completasse 15 anos, sempre ensaiávamos, ele morreu 10 dias antes daquele aniversário. Com a minha avó, o plano era fazer um bolinho para comemorar os meus 20 outonos no sábado, esse sábado nunca chegou. Foram embora sem cumprir o prometido, mas foi a única vez na vida em que fizeram isso. De qualquer jeito, não ficaram me devendo nada, me deixaram o que basta, bastante amor.

Só escrevi tudo isso para explicar que criança não precisa de tênis caro, de viagens e passeios da moda, muito menos de roupa nova ou escola chique. Criança precisa de amor, de tempo, de disponibilidade. Criança precisa de pai e mãe, de promessas cumpridas, de exemplos. Criança não precisa ser compreensiva. Entender que os pais vão pra longe ou que não vão à festinha da escola é pedir demais, os pais é que precisam entender que isso dói mesmo com as melhores intenções.

Dá pra passar a infância usando roupa usada? Talvez. Mas dá pra viver a vida adulta inteira convivendo com a ausência que horas extras, reuniões ou longas viagens de negócios causam? Não sei, estou descobrindo. Só sei que meus avós não eram workalcoholics.